Após ter sido anunciado forte aumento no preço cobrado pelos combustíveis nas refinarias, o Congresso aprovou às pressas o Projeto de Lei Complementar nº 11 de 2020, que já foi sancionado na íntegra pela Presidência e convertido na Lei Complementar nº 192, publicada na sexta-feira, dia 11 de março de 2022 (LC 192).
Dentre as diversas medidas aprovadas, está a definição de que o ICMS incidirá uma única vez sobre operações com gasolina e etanol anidro, diesel, biodiesel, gás liquefeito de petróleo, com base em alíquota a ser definida em Convênio que deve ser aprovado pela unanimidade dos Estados e do Distrito Federal, no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).
Alíquota uniforme deve reduzir complexidade do sistema tributário sobre o setor, mitigando os efeitos da guerra fiscal
Definiu-se ainda que a alíquota não incidirá mais sobre o preço do combustível (ad valorem), mas sim sobre unidade de medida a ser definida (ad rem), por exemplo, sobre o litro de combustível.
À primeira vista, a inovação causa estranheza, especialmente porque as alíquotas internas do ICMS sempre foram definidas individualmente pelas unidades da Federação, em razão da autonomia constitucional dos entes federados para dispor sobre os tributos de sua competência.
Inclusive, já surgiram rumores que os Estados poderão questionar a LC 192 no STF, tendo por base principalmente o argumento de que a disposição feriria o pacto federativo e a autonomia financeiro-tributária desses entes.
Entretanto, a Emenda Constitucional nº 33 de 2001 já havia admitido que uma lei complementar criasse um regime de ICMS monofásico para combustíveis e lubrificantes, e, além disso, que a respectiva alíquota fosse uniforme em todo território nacional, podendo ser específica por unidade de medida.
Como justificativa para implementação desse modelo, o Congresso assinalou que a incidência monofásica do ICMS sobre combustíveis não representará qualquer perda para os Estados, pois facilitará a fiscalização tributária e reduzirá a sonegação.
De fato, a distribuição das receitas do imposto entre os Estados ficou bem delimitada, pois serão destinadas ao Estado onde ocorrer o consumo dos combustíveis, salvo as exceções especificadas no texto da lei complementar.
Ainda, na medida em que a LC 192 restringiu como contribuintes do ICMS monofásico apenas o produtor e o importador dos combustíveis, tendo elencado como hipóteses de fato gerador do tributo apenas a saída e o desembaraço aduaneiro desses produtos, a sistemática traz uma prática que tende a agradar aos Estados e mitigar a prática de sonegação.
Como contrapartida, supõe-se que a racionalização da tributação dos combustíveis trará uma redução de custos ao consumidor.
De um lado, entende-se que a adoção de alíquotas fixas e vinculadas a unidades de medidas trarão maior transparência e diminuirão a volatilidade dos preços, pois serão menos afetados por flutuações conjunturais. De outro, espera-se que a utilização de uma alíquota uniforme reduza a complexidade do sistema tributário sobre o setor, mitigando os efeitos danosos da guerra fiscal e dos planejamentos tributários abusivos e incentivando investimentos.
Nesse contexto, é de se questionar quais os parâmetros para que o Confaz defina a alíquota única do ICMS sobre combustíveis. Afinal, quais são os critérios que garantirão, efetivamente, o objetivo buscado com a edição da referida LC 192, ou seja, uma menor carga tributária que a atualmente vigente?
A própria LC 192 dispôs sobre necessidade de que as alíquotas sejam definidas com base em estimativas de evolução do preço dos combustíveis, vedando que haja uma ampliação do peso proporcional do tributo na formação do preço final ao consumidor.
Mas isso será o suficiente? Ora, o critério de tributação a ser definido Confaz não deveria, inequivocamente, levar a uma carga tributária inferior à atualmente suportada pelos contribuintes?
Talvez a própria Constituição sirva de balizadora do Confaz, pois ela determina que o ICMS poderá ser seletivo em função da essencialidade das mercadorias e serviços. Apesar disso, os Estados instituíram alíquotas maiores a combustíveis notadamente essenciais - como a gasolina e o etanol.
Ao julgar o tema em novembro de 2021, o STF definiu que é vedada a imposição de alíquotas superiores à alíquota padrão nas operações com energia elétrica e serviços de telecomunicações, em razão de sua essencialidade. Para a maioria dos ministros do STF, a Constituição deve ser interpretada no sentido de que, se um item for classificado como essencial, poderá ter sua alíquota fixada em patamares inferiores à alíquota padrão, ao passo que apenas itens não essenciais (ou supérfluos) poderão ter alíquotas superiores.
Dessa forma, nenhum outro critério poderá ser utilizado para que sejam manejadas as alíquotas do ICMS, se não o da própria essencialidade.
A decisão foi proferida sob o rito de repercussão geral, afetando todos os Estados a partir do exercício de 2024. Neste sentido, apesar de se ter discutido apenas a essencialidade da energia elétrica e dos serviços de telecomunicações, é inequívoca a aplicação do mesmo entendimento sobre combustíveis, em razão de seu caráter nitidamente essencial.
Assim sendo, espera-se que o Confaz, no exercício de sua nova competência para dispor sobre o cálculo nacional do ICMS sobre combustíveis, adote como parâmetro não os preços hoje praticados (que já possuem uma alta carga tributária, decorrente de alíquotas muito superiores à alíquota padrão de cada Estado), mas preços que guardem relação com a essencialidade desses produtos, de modo a ser observada uma efetiva redução da carga tributária suportada pelo consumidor final, em respeito à recente decisão do STF sobre o tema. Do contrário, contribuintes do país inteiro poderão questionar a constitucionalidade do parâmetro adotado.
De todo modo, se a medida for encarada dentro de um parâmetro perseguido em termos de reforma tributária, norteada pela simplificação de um sistema tributário altamente complexo, nos parece que andou bem o Legislativo, bastando agora cuidar para que, mais do que neutra, a medida seja balizada pela essencialidade, contribuindo para o arrefecimento da constante alta de preços no setor.
Fonte: Valor Econômico
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