Países como a Índia estudam ampliar o uso do combustível vegetal, mas isso não significa que nosso mercado será protagonista ou ganhará algo
O anúncio do governo indiano de que o país irá investir na substituição dos combustíveis fósseis pelo etanol (que lá custa entre R$ 4,20 e R$ 4,35 o litro), como sua base energética automotiva, gerou um verdadeiro frenesi no setor aqui no Brasil.
Com a indústria nacional combalida, principalmente em função da queda do mercado doméstico e da falta de perspectivas positivas para curto e médio prazos, tudo indica que o país está submergindo a uma nova “era das carroças”.
Nossos automóveis já estão em evidente descompasso tecnológico, quando os comparamos aos mais recentes lançamentos chineses, europeus e norte-americanos, e esta defasagem ameaça até mesmo nossas módicas exportações – afinal são produtos cada vez mais caros e ultrapassados.
Diante da temeridade deste quadro, a possibilidade de o Brasil transferir sua expertise no uso do etanol para a Índia, que hoje é o quinto maior produtor de veículos do mundo (3,4 milhões de unidades entre carros de passeio e comerciais leves, em 2020) e um dos mercados que mais crescem no mundo (mais de 28%, só no primeiro trimestre deste ano), causou furor.
Afinal, foi recebida internamente tanto como uma luz no fim do túnel quanto como um momento de virada para nossa indústria. Mas quais são as reais perspectivas?
Brasil exportador global de etanol? Nem tanto...
Infelizmente, não chega a tanto. É que o plano anunciado pelos indianos tem apenas um objetivo: preparar o setor para a eletrificação, reduzindo a dependência de combustíveis fósseis na medida em que os carros elétricos forem abocanhando fatias cada vez maiores. O nome disso é planejamento.
O mais recente relatório da BloombergNEF aponta que, enquanto os modelos elétricos alcançarão uma participação de 30% no mercado global já em 2030, o mesmo só ocorrerá na Índia com uma década de atraso.
Até lá, o país já deverá ter implantado um modelo energético renovável. “Em cinco anos, teremos plataformas elétricas modernas, ao passo que os automóveis com motores a combustão começarão a ser descontinuados gradualmente”, explica o vice-presidente administrativo da Mahindra, Anish Shah.
Portanto, imaginar que o Brasil vai liderar uma corrida tecnológica neste campo só faz sentido se ela for disputada em marcha à ré.
A adição de 20% de etanol à gasolina indiana, até o biênio 2023/24, é uma medida paliativa, que também tem como objetivo segurar a inflação, diante do aumento do preço do petróleo.
Hoje, a gasolina indiana já contém 10% de álcool. “A partir de 1º de abril de 2023, nossa gasolina terá adição de 20% de álcool e, para o uso exclusivo de etanol, estamos criando uma cadeia produtiva completa, gerando empregos para agricultores e em instalações industriais”, disse o secretário do Petróleo indiano, Tarun Kapoor, ao jornal Indian Times.
Kappor afirmou que, para 2025, a Índia projeta um volume de importação de 10 bilhões de litros do combustível verde – no ano passado, a produção brasileira ficou em 30,3 bilhões de litros.
Atualmente, o Brasil exporta menos de 10% de sua produção de etanol (foram 2,7 bilhões de litros no ciclo 2020/21), apontam os dados da União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica).
Mais barato que o combustível norte-americano, o álcool anidro brasileiro – que é o misturado à gasolina – viu suas vendas externas crescerem 40% no ano passado, mas o pacote de incentivos econômicos do governo Biden, nos Estados Unidos, deve segurar a participação do produto nacional no mercado global.
Os EUA produzem mais da metade do etanol usado como combustível em nível mundial e, só em 2020, o Brasil aprovou a importação de 0,2 bilhão de litros do produto norte-americano. Portanto, achar que nós é que vamos abastecer o mercado indiano é de uma ingenuidade sem tamanho.
Em setembro do ano passado, o presidente da Unica, Evandro Gussi, já avaliava que “cada litro de etanol que entra no Brasil é um problema a mais para o setor”.
E enquanto a indústria sucroalcooleira sonha com dias melhores, o presidente da Godavari Biorefineries e da associação dos produtores indianos do setor, Samir Somaiya, joga um balde de água fria nas esperanças brasileiras:
“Não vejo grandes chances para importação de etanol dos Estados Unidos ou do Brasil, já que a meta do governo indiano é incrementar a competência local. Estamos respondendo ativamente às novas políticas e não há dúvidas de que aumentaremos nossa produção do biocombustível”, declarou o executivo, durante a conferência da Datagro New York Sugar & Ethanol, realizada no último mês de maio.
Ao todo, a Índia irá investir US$ 7 bilhões (mais de R$ 36,5 bilhões) na instalação de unidades de destilação e para encerrar, de vez, este assunto, a indústria sucroalcooleira tailandesa, principal fornecedora da Índia, prevê uma grande recuperação já para a safra 2021/22.
O analista sênior do Mitr Phol Sugar, quinto maior grupo do setor em nível global, Sasathorn Sanguandeekul, disse ao boletim da Nasdaq que o ciclo atual chegará a 90 milhões de toneladas de cana-de-açúcar, contra os 66 milhões do ano passado.
Portanto, se sobrar alguma beirada para o Brasil neste xadrez, a única mudança perceptível para o motorista será o aumento dos preços tanto do álcool quanto de gasolina vendidos aqui, já que a oferta no mercado interno será reduzida em caso de aumento das exportações do nosso álcool, inflacionando os preços.
É o que, inclusive, se extrai das palavras do coordenador-geral de Agroenergia da Secretaria de Política Agrícola do Ministério da Agricultura e Abastecimento (MAPA), Cid Caldas:
“Essa medida – a ampliação do uso do etanol, na Índia – desvia um expressivo volume da produção de açúcar para a de etanol, como biocombustível, contribuindo para reduzir a oferta mundial do produto, com reflexo na melhoria – aumento – dos preços”.
Há oportunidades de desenvolvimento?
Já com relação aos motores bicombustíveis, é difícil de imaginar como a transição energética na Índia beneficiará o motorista brasileiro. A tecnologia flexível criada, testada e aprovada no Brasil não é de propriedade da União, mas das empresas que a desenvolveram.
Pior, são de grupos multinacionais que, pela própria composição jurídica, têm direito de usá-la aqui e acolá. Recentemente, o presidente da Volkswagen para a América Latina, Pablo Di Si, destacou, em um evento do Ministério das Minas e Energia, que o país pode e precisa criar sua alternativa aos carros elétricos:
“O Brasil precisa se mostrar para o mundo como um importante desenvolvedor de biocombustíveis, exportando tecnologia”, afirmou o executivo. Sobre a nova regulamentação indiana, avaliou que “vai beneficiar nossas exportações de veículos, também na Índia”.
Di Si se esquece que a Índia, recentemente, ultrapassou o Brasil no ranking dos maiores produtores de automóveis do mundo, não havendo razão para importar nossos veículos, até pelo fato de possuírem, hoje, uma capacidade industrial superior à brasileira – seja quantitativa ou qualitativamente.
Na verdade, não há a menor possibilidade de o país exportar tecnologia, mas, apenas e tão somente, etanol – e isso, porque a exportação de cana-de-açúcar in natura para processamento externo é impossível.
Hoje, mais de 65% das exportações brasileiras de carros de passeio e comerciais leves – em valores – se concentram em Argentina (29%), Estados Unidos (14%), União Europeia (12%) e México (11%). Os negócios com a Índia são insignificantes.
Por outro lado, as exportações indianas de veículos automotores cresceram mais de 160%, na última década, saltando de 1,8 milhão de unidades para respeitáveis 4,75 milhões, segundo dados da associação das montadoras de lá (SIAM).
Só para efeito comparativo, hoje a Índia exporta mais carros por ano do que o Brasil produz. Diante disso, e do fato de o sistema bicombustível já ser implementado por fabricantes indianos, mesmo sem gozar de incentivos governamentais específicos, é mais fácil que, em um futuro próximo, as linhas de produção de alimentação flexível migrem do Brasil para a Ásia.
Ou seja, qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento da dinâmica industrial é capaz de antever que, diante do processo de desindustrialização (vide o fechamento das unidades fabris da Ford, no país) que atravessamos, é possível que se siga uma debandada geral, assim que o governo indiano anunciar suas diretrizes para veículos flexíveis, em outubro.
Nunca é demais lembrar que o pacote de incentivos para os carros flex na Índia irá contemplar investimentos em linhas de fabricação e transferência de tecnologia para produção local.
“Essa questão não é fácil, mas há oportunidades para o Brasil”, pontuou o presidente da Toyota para a América Latina, Masahiro Inoue, em entrevista à “Folha de S. Paulo”.
“Temos que aproveitar o que já existe. Não adianta investir muito dinheiro para produção de baterias – sem – uma estrutura ampla de carregamento. No passado, os governos brasileiro e japonês se aproximaram, mas o Japão não produz cana-de-açúcar”, acrescentou.
A fala de Inoue reforça o entendimento de que o conhecimento técnico e a experiência no uso de propulsores flexíveis, além de equipamentos pesados para o setor sucroalcooleiro, são os únicos “produtos” de exportação brasileiros.
Em tempos atuais, os indianos já respondem por 2% do etanol produzido no mundo e são destino de 15% do total exportado pelos Estados Unidos.
E para quem ainda acha que os brasileiros têm uma espécie de hegemonia sobre o álcool combustível, o Ford T (produzido entre 1908 e 27) podia usar gasolina, etanol ou querosene, bem como os dois primeiros misturados, enquanto o novíssimo Tuatara, superesportivo norte-americano da SSC, se tornou o modelo de produção mais veloz do mundo, atingindo a máxima de 532,9 km/h usando um motor flexível de 1.774 cv.
Em ambos os casos, não havia nenhum brasileiro por lá e não ganhamos um único centavo…
Por Homero Gottardello
Fonte: Revista Mobiauto
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