A mosca-dos-estábulos prejudica criadores de gado de pelo menos cinco estados brasileiros. Os prejuízos são estimados em mais de R$ 1 bilhão por ano. A proliferação explosiva da mosca tem relação direta com os resíduos gerados pelas usinas de açúcar e álcool.
O comportamento dos animais é típico. Eles ficam aglomerados para esfregar o corpo uns nos outros. Os rabos não param. Essa tentativa de coçar as patas intensifica o ataque das moscas.
“Fica num tormento. Não tem sossego. É desse jeito, andando pra lá e pra cá, debaixo de árvore, se coçando”, diz Isaías Martins, administrador de fazenda.
Esse também é um tormento para os criadores. “A gente não sabe nem o que faz. Você vem aqui botar bezerro para mamar no meio do dia e não consegue. A mosca não deixa. Pica a gente, pica o bezerro. Fico com dó do gado. Isso é revoltante pra gente”, diz David Fred Tolói, produtor de leite.
A mosca-dos-estábulos, que tem o nome científico de stomoxys calcitrans, é muito parecida com a mosca doméstica. Mas esse inseto é hematófago, ou seja, alimenta-se de sangue. “É uma praga. Vê sangue, ela vem mesmo. Desse jeito eu nunca tinha visto”, completa Martins.
A mosca sempre existiu. Mas, com boa higiene e sem acúmulo de matéria orgânica, nunca foi grande incômodo. Porém, infestações maiores podem causar redução de até 50% na produção de leite e de 10% a 30% no ganho de peso dos animais.
O pecuarista José Quirino diz que os animais da propriedade estão emagrecendo. É o caso das novilhas, por exemplo. “Perdeu muito peso. Média de 30 quilos cada uma. Gado novo, gado sadio, pasto à vontade, só que não conseguia comer. Esses são dois touros caros. Eles enxugaram muito. Emagreceram muito. Sentiram muito as moscas”, lamenta.
Há dois anos, a fazenda de produção de leite no município de Planalto tinha 120 vacas de boa qualidade, estabuladas. Mas, o dono desistiu de brigar contra as moscas. Ele vendeu quase todos os animais e o sofrimento dos poucos que restaram é visível.
Uma das vacas tem ferida aberta pelas moscas. Ela estava prenha, mas perdeu o bezerro, como outras duas. “Não tem como proteger. Elas atacam. Onde estiver, elas tão atacando. Vem atrás do sangue”, explica Martins.
Como as moscas também atacam outros animais, a situação do chiqueiro é desoladora. Os animais ficam enfraquecidos e com feridas cobertas pelos insetos. Uma nuvem de moscas se mantém sobre a porca cheia de leitõezinhos para amamentar.
“O cachaço está quase morrendo e terá de ser sacrificado. Pesava 150 quilos. Hoje, nem sei quanto pesa. A mosca acabou com ele. Não come. A mosca não deixa ele comer", diz Martins.
O administrador da fazenda conta que o patrão dele até insistiu bastante com o leite. Só desativou o local quando viu a produção cair de 1,8 mil para 800 litros por dia. O tanque está à venda. A maior parte da terra acabou arrendada para o plantio de cana. Uma ironia, já que o problema da mosca tem relação com as lavouras que dominam a região, ou, mais exatamente, com a aplicação de vinhaça, um resíduo da produção de álcool nas usinas usado como ferti-irrigação.
“Hoje, a vinhaça tem uma legislação que atende à questão do meio ambiente. Não se imaginava que esse problema da vinhaça fosse atacar a questão das moscas. Às vezes, a quantidade está dentro da lei perante a parte do meio ambiente. Mas ainda é muito para a questão da mosca”, explica Bruno Pereira, veterinário da CATI.
O Plano de Aplicação de Vinhaça – PAV, criado pela Empresa de Controle Ambiental Paulista – CETESB prevê um limite máximo de 150 mil litros por hectare, que nem sempre é respeitado. “A gente vê com os produtores que existem pontos que ficam de 15 a 20 dias no mesmo lugar jogando vinhaça sem parar. Isso é errôneo. O principal que leva à mosca é o empoçamento da vinhaça”, alerta Pereira.
A produção de cada litro de álcool gera até 15 litros de vinhaça. Deslocar constantemente os equipamentos para distribuir bem a aplicação gera despesas adicionais para as usinas. “Agrega muito custo na cadeia produtiva. Então, a gente não sabe. É mais fácil se livrar da vinhaça rapidamente”, completa o agrônomo.
A mosca não era um grande problema no tempo da colheita manual da cana, com queimadas. Com a colheita mecanizada, a palhada passou a ficar no solo. É boa para o solo, mas também favorece a mosca por ser matéria orgânica. Combinada com a vinhaça jogada nos plantios, principalmente em quantidade excessiva, forma o que os técnicos chamam de uma mistura explosiva.
O ideal, além de controlar o volume de vinhaça, é escarificar o solo, incorporando a palha, para que o líquido se infiltre rapidamente, sem empoçar. Mas isso também custa dinheiro.
No amanhecer na propriedade do produtor de leite David Fred Tolói, com a temperatura abaixo dos 20ºC, as moscas não são problema. Mas durante o dia elas perturbam as vacas e derrubam a produção.
“Caiu 50% porque as vacas não vai pastar, fica amontoada o dia inteiro, batendo, tocando mosca. Toca para o pasto, ela não quer ir, com medo da mosca. Bastante vezes pensei em desistir, mas a gente tem que insistir. A gente estava aqui primeiro do que as usinas. A gente tá aqui de quando nasceu. A usina chegou há oito anos. Eles que tão culpado, não a gente”, diz Tolói.
Nos últimos anos os surtos da mosca se intensificaram no Brasil. Um levantamento da Embrapa indica que nos últimos três anos eles atingiram áreas dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O diretor técnico regional da Extensão Rural Paulista – CATI, diz que o problema ainda pode ser considerado recente.
“É um problema novo. Não se conhecia o ciclo da mosca com essa explosão depois do advento da vinhaça, das usinas sucroalcooleiras. Então, precisa de um tempo de estudo para isso”, diz Sidney Martins.
O gerente regional da CETESB não concorda. “Oito anos, realmente, é muito tempo. São problemas cíclicos. Todo mundo tem que ficar alerta. O problema é que não pode deixar baixar a guarda. O problema é recorrente”, diz José Benitez de Oliveira.
Só no último ano, problemas com resíduos das usinas levaram a 40 autuações por parte da CETESB em todo estado, incluindo outro tipo de material gerado na filtragem do caldo da cana. A chama torta de filtro é sólida, mas tem até 80% de umidade. Por isso, exige cuidados.
“O adequado é você fazer a compostagem desse material, que é um processo que demora 60 dias. Esses resíduos são revolvidos para possível aplicação na lavoura. A outra opção é a aplicação desses resíduos de forma imediata. Não havendo estocagem por muito tempo desse material”, explica Oliveira.
Nada do que se vê em um depósito, diz o técnico da CETESB. As plantas e cogumelos crescem à vontade em montes de torta, uma situação passível de advertência ou até multa.
Não muito longe do depósito, ocorrem outras situações favoráveis à proliferação das moscas. Há vazamentos em tubulações de vinhaça, canais de distribuição sujos, sem manutenção, com muita matéria orgânica úmida acumulada, ideal para a criação das larvas. “São situações pontuais que devem ser atacadas pela usina no dia-a-dia. Ela deve dispor de um sistema das pessoas verificarem isso”, diz Oliveira.
Segundo os técnicos, há prazos diferentes para a adequação das usinas. Existem as mais avançadas e as mais atrasadas no combate à mosca. Algumas buscam soluções localizadas, como a aplicação de produtos nas propriedades.
“A pulverização vai incidir sobre moscas adultas. A curto prazo, pode ser que ela resolva um pequeno surto. Mas não é uma medida economicamente viável, principalmente para quem produz leite, por questão de resíduo, ficar sempre pulverizando. O interessante é você controlar a reprodução dela”, diz veterinário.
Para isso, é necessária uma ação integrada. O Ministério Público na região abriu um inquérito sobre o assunto e tem convocado reuniões com todos os interessados. A ideia é chegar a um compromisso entre eles, o chamado Termo de Ajustamento de Conduta – TAC.
“Nós pretendemos, de uma forma mais definitiva possível, sanar esse problema. As partes envolvidas assumirem suas responsabilidades na resolução do problema. A gente conseguir de forma definitiva a longo prazo equacionar essa questão”, diz o promotor Felipe Ventura de Paula.
As duas usinas que atuam na região do noroeste paulista não atenderam aos pedidos de entrevista da reportagem. Estima-se que, multiplicados pelo Brasil, prejuízos para os produtores cheguem a mais de R$ 1 bilhão por ano.
A próxima reunião convocada pelo Ministério Público, para discutir o assunto, está marcada para o dia dois de setembro no fórum da cidade de Buritama.
Fonte: Globo Rural.
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