Se você quiser ser dono de uma usina, pegue um talão de cheques e passe o dia em Sertãozinho. É com essa frase que os empresários do setor de açúcar e álcool gostam de explicar a importância desse município no interior paulista
Apesar de estar a 350 quilômetros da capital e ter pouco mais de 100 mil habitantes, Sertãozinho ficou conhecida como o Vale do Silício do etanol. Lá estão usinas, canaviais e, especialmente, as principais indústrias de equipamentos para a montagem e a manutenção do parque sucroalcooleiro nacional.
Quando o setor vai bem, Sertãozinho vai ainda melhor. Mas, se vai mal, a cidade se torna um retrato bem definido dos problemas. É o que ocorre neste momento. "Chegamos a crescer mais do que a China", diz Nério Costa, ex-prefeito que se candidatou à reeleição e perdeu, segundo sua própria avaliação, por causa da retração econômica que se abateu durante sua gestão.
"Mal sentei na cadeira de prefeito e veio a crise – um a um, cada segmento da cadeia foi pisando no freio, até que todo o setor ficasse em compasso de espera".
Poucos setores no país tiveram tanto glamour na década passada quanto o etanol. O combustível verde (para alguns entusiastas, verde e amarelo) foi apontado como o substituto do petróleo. Dispostos a participar de sua produção no Brasil, investidores de todo o mundo compraram usinas aqui.
A participação de estrangeiros subiu de 3%, em 2006, para 33% hoje. A petroleira anglo-holandesa Shell, o grupo agrícola francês Louis Dreyfus e a produtora indiana Shree Renuka são apenas algumas das empresas de outros países presentes na produção nacional.
Em 2008, no auge da euforia etílica, o setor recebeu 10 bilhões de dólares em investimentos. De lá para cá, 41 usinas fecharam as portas. Já foram para o ralo 45 mil postos de trabalho no setor – o equivalente a 5% dos empregos. Um estudo do banco Itaú BBA sinaliza que as perdas podem estar só no começo: 90 dos 147 grupos empresariais em operação no Centro-Sul do país têm dívidas elevadas e metade corre o risco de fechar as portas.
São negócios que já foram referência, como o grupo João Lyra, do deputado do mesmo nome, que tem usinas em Alagoas e Minas Gerais em recuperação judicial. Alexandre Figliolino, diretor do Itaú BBA para etanol e cana-de-açúcar, tem uma analogia particular para explicar a situação:
"Os usineiros são como antílopes fugindo de um leão", diz Figliolino. "O leão pegou os antílopes mais frágeis. Agora, começa a alcançar os fortes, e isso coloca em risco a saúde do setor".
É o que se vê em Sertãozinho. No campo, o panorama é de queda na produtividade. "As pessoas reclamam que o agricultor chora demais, mas a situação aqui é dramática", diz Luiz Carlos Tasso Júnior, produtor em Sertãozinho. Tasso caminha pelo canavial queixando-se de que não tem dinheiro nem para tratar direito o solo, muito menos para investir na aquisição de veículos. Usa tratores emprestados de um amigo e o ajuda a pagar o financiamento. A colheita é feita pela usina que comprar a cana. Em 2007 seus 120 hectares produziram 92 toneladas de cana por hectare. Na última safra, o resultado caiu para 74 toneladas. "Fiz dívida para refinanciar dívidas", diz Tasso. "Hoje, só quitaria todas se vendesse tudo que tenho, até a casa onde moro".
Dados globais da produção mostram que essa é a realidade de boa parte de médios e pequenos agricultores de cana. Em 2008, o setor colhia 85 toneladas por hectare. Na safra passada, a média estava em 68 toneladas por hectare – uma queda de 20%.
"O valor de cana caiu, mas o preço dos insumos aumentou e as usinas cobram mais pela colheita", diz Manoel Ortolan, presidente da Organização dos Plantadores de Cana da Região Centro-Sul do Brasil. Os associados da entidade representam quase um terço da produção nacional.
No ano passado, as margens passaram a ser negativas. O custo de produção fechou em 68 reais por tonelada de cana, mas o preço da cana ficou em 64 reais por tonelada.
O aperto na indústria sucroalcooleira começou recentemente. De 2008 a 2012, 81 projetos de usinas foram postos de pé no país. Para dar conta da demanda, a indústria de Sertãozinho cresceu. O número de empresas passou de 500 para 700. A cidade absorveu mais de 3 mil profissionais e chegou a empregar 47 mil trabalhadores.
Nos dois últimos anos, o número de postos retrocedeu aos níveis de 2008. Na região, que compreende sete cidades, o emprego acumula queda de 2% nos últimos 12 meses. Na indústria, o faturamento caiu até 70%.
A Smar, especializada na produção de sistemas de automação, perdeu 100 funcionários no último ano e não repôs nenhum. Nos meses mais críticos, paga os operários, mas pede aos executivos que esperem um pouco mais para receber salários. Tem feito um esforço para manter os 120 engenheiros, responsáveis por criar novas tecnologias.
Foram eles que garantiram nos EUA o registro de mais de 50 patentes, expostas como troféus em quadros nos escritórios da empresa. Entre seus orgulhos está um sistema de injeção que movimenta os motores do porta-aviões John F.Kennedy, da Marinha americana.
Em 2009, a Smar trabalhava em três turnos, mas há meses opera com ociosidade de 30% da capacidade. "Cerca de 20% de meus clientes faliram", diz o chileno Eduardo Munhoz, diretor comercial da divisão de açúcar e etanol da Smar. "Não dá para substituí-los da noite para o dia".
LUCROS NO EXTERIOR
Para contornar as perdas, as empresas lutam por um espaço no concorrido e minguado mercado externo. É o caso da TGM. Especializada na fabricação de turbinas, neste momento tem 92% do faturamento garantido por exportações para Ásia, América Central e União Europeia.
Waldemar Manfrin, sócio-diretor da TGM, tem orgulho de mostrar as estruturas gigantescas que produz para o mundo. "Em Brasília, dão incentivos para fogões, geladeiras e carros", diz Manfrin. "Já o setor foi esquecido. Se não exportássemos, estaríamos encrencados".
Em 2003, a TGM faturou 80 milhões de reais. No auge da euforia com o etanol, o resultado bateu quase em 700 milhões. Em 2012, ficou perto de 200 milhões graças às exportações.
Os efeitos negativos começaram a chegar ao comércio. Na Barão do Rio Branco, uma rua aprazível com árvores e canteiros de flores, que concentra o varejo de Sertãozinho, as lojas têm mais funcionários do que clientes. As vendas esfriaram desde a virada do ano.
A Paulmem, loja tradicional de vestuário prestes a completar 40 anos, passou a década registrando aumentos de dois dígitos nas vendas, ano a ano. Em 2012, teve o primeiro Natal com alta de apenas um dígito: 6%. Desde então as vendas esfriaram mais. Para complicar, o novo empreendimento da família Ribeiro, dona da Paulmem, vai mal das pernas.
O Shopping da Moda, inaugurado em outubro, ainda opera no vermelho. No fim de abril, a família desativou o estacionamento coberto para transformá-lo numa área de saldões. "O Dia das Mães foi bem fraquinho", diz Erika Ribeiro, sócia do Shopping da Moda. "Agora, esperamos que os produtos mais baratos atraiam os clientes e melhorem as vendas".
Como Sertãozinho depende da retomada do etanol no resto do país, o comércio local pode ter de esperar. "Não há encomendas para a construção de usinas", diz Antônio Eduardo Tonielo Filho, presidente da associação que reúne fabricantes de equipamentos para o setor de etanol. "São elas que impulsionam os elos da cadeia".
O mau humor que impera no setor espalhou-se pelo Brasil. O estado de Goiás, por exemplo, foi tomado pela euforia dos investidores a partir de meados dos anos 2000. Inaugurou 11 usinas em 2008. Hoje, há mais de 40 projetos aprovados no estado, com incentivo fiscal garantido. Quinze deles contam até com licença ambiental e podem iniciar o plantio de cana. Todos, porém, estão engavetados.
Já a cidade de Rolândia, vizinha a Londrina, no Paraná, entrou numa crise severa. A usina da cooperativa Corol foi um símbolo no progresso da cidade de 58 mil habitantes. Chegou a empregar 6% da força de trabalho local e a responder por 5% da receita da prefeitura.Em 2011, a usina foi à falência com uma dívida de 600 milhões de reais. Apenas 20% de seus empregados foram absorvidos em usinas da região.
"No Paraná e em boa parte do Brasil, a indústria do etanol está localizada em pequenos municípios, que dependem fortemente da atividade", diz Miguel Tranin, presidente da Associação de Produtores de Bioenergia do Paraná. "Quando a usina se vai, boa parte da riqueza local se perde".
Existem cidades cuja economia sempre foi dependente do açúcar e do álcool e que hoje agradecem à diversificação. Foi o que ocorreu em Piracicaba, no interior de São Paulo. "Desde 2008, cerca de 5 mil pessoas na cidade ficaram desempregadas por causa da crise no setor", diz Tarcício Mascarim, secretário de Desenvolvimento Econômico de Piracicaba.
"A nossa sorte foi que a montadora Hyndai decidiu se instalar aqui e aproveitou a maior parte dessa mão-de-obra". A Dedini, a mais tradicional indústria do setor, com sede em Piracicaba, até seguiu o exemplo. Buscou a diversificação, mas não teve o resultado esperado. Em 2008, tinha 6.500 funcionários e fechou o ano com faturamento de 2,2 bilhões de reais – 70% dele graças às fartas encomendas do setor sucroalcooleiro.
Hoje, a Dedini tem 3 mil empregados e, no ano passado, faturou 600 milhões de reais, 55% deles sustentados por pedidos de hidrelétricas, mineradoras, cervejarias e empresas de petróleo e gás. "Vivemos a estagnação dos investimentos no país", diz José Luiz Olivério, vice-presidente da Dedini. É triste constatar o quando andamos para trás num setor que já foi um dos pilares do novo Brasil.
Um estudo do BNDES publicado em 2011 diz que o Brasil tem potencial para 130 novas usinas até 2021. Pelo que se vê, corremos o risco de ficar mesmo só no potencial.
Política
O controle de preço da gasolina para deter a inflação deixou o etanol à mercê da política e afugentou os investidores.
O inferno astral do setor de etanol tem muitas razões. A crise financeira internacional cortou o crédito das usinas no momento em que estavam endividadas e comprometidas com fusões e expansões. O preço do petróleo caiu e a promessa de aumento das exportações do etanol para substituir o combustível fóssil não vingou.
Problemas climáticos comprometeram a produção de cana. O tempo, a mãe natureza e as leis de mercado cuidariam de resolver questões como essas. Mas o que realmente jogou o setor de joelhos foi a política.
Ao assumir a Presidência, Dilma Rousseff decidiu segurar o preço da gasolina e, assim, combater a inflação. A estratégia corroeu os resultados da Petrobras e, de quebra, tirou a competitividade do etanol. Hoje, só 20% dos veículos são abastecidos com álcool.
No fim de abril, o governo anunciou um pacote de ajuda ao setor, com a redução de tributos e a criação de novas linhas de financiamento. A Unica, entidade que congrega as usinas, emitiu uma nota agradecendo a iniciativa, mas reivindicou ações de longo prazo.
Segundo um político ligado ao setor, o governo ameaçou suspender o pacote se não tivesse apoio oficial da Unica. Uma semana depois, a entidade soltou uma nova nota, apoiando o pacote – e sem nenhuma menção a eventuais problemas.
Não há, porém, como aplacar o descontentamento de quem sofre com a nova realidade do etanol. "As medidas não fazem cócegas nas empresas, afirma Carlos Liboni, secretário de Indústria e Comércio de Sertãozinho. "O que está em jogo é maior do que vender álcool no posto: precisamos de uma política clara e de longo prazo para dar segurança aos investidores".
Fonte: Revista Exame
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