A imprensa tem noticiado que o governo federal está discutindo mudanças estruturais no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que teriam como objetivo conter o loteamento político e melhorar a eficiência operacional, considerada baixa.
O Incra não difere de muitas instituições públicas que envelheceram e foram corroídas por forte corporativismo, que impede a atualização de objetivos, conceitos e práticas e anula boa parte do efeito renovador do ingresso de milhares de jovens no serviço público nos últimos anos. A verdade é que nos dez anos de administração hegemônica do PT não há exemplo de enfrentamento do corporativismo em que as propostas do governo tenham sido aprovadas sem emendas que pioram o soneto. Por isso não será fácil mudar a estrutura e a cultura dominante no Incra.
Um dos focos das mudanças seriam as superintendências, cujo loteamento político tem produzido intensos conflitos na base aliada do governo nos Estados. Algumas operam como feudos quase à margem do comando de Brasília, negociando acordos e fazendo promessas inalcançáveis, estimulando a ação dos remanescentes dos sem-terra para pressionar o governo a realizar novas intervenções agrárias que fortalecem politicamente as administrações locais junto de certos movimentos sociais. Vez por outra as superintendências são protagonistas de "problemas administrativos" que exigem intervenções "saneadoras" do poder central. Não está claro que arranjo institucional poderia ser usado para conter esses desvios. A estadualização não é uma alternativa real, até porque a desapropriação para fins de reforma agrária é prerrogativa da Presidência da República, e poucos Estados têm interesse e condições para assumir responsabilidades de implementar projetos de assentamento. A descentralização, com maior envolvimento das prefeituras, tampouco representaria solução duradoura para os problemas.
Os assentamentos estão concentrados em municípios pobres, que não têm capacitação para cumprir com mandatos constitucionais básicos na área de educação, saúde e infraestrutura nem como porta de entrada ao Sistema Único de Assistência Social (Suas). Transferir funções a esses municípios por meio de convênios com o governo federal tem sido fórmula certa de fracasso. Passada a lua de mel, na qual os municípios recebem parte do enxoval (recursos financeiros, equipamentos, cursos e intenso vaivém de funcionários), começam os problemas de manter um casamento apressado e sem comunhão de objetivos. Vêm as prestações de contas, os recursos federais atrasam, falta dinheiro para o combustível e manutenção das máquinas, os contratos temporários dos técnicos terminam, os prefeitos viajam a Brasília, mobilizam seus deputados, que em geral renovam promessas que não podem cumprir, e ao final de pouco tempo todos perdem o interesse e o assunto cai no abandono, até surgir oportunidade para um novo casamento, com objetivos modificados, mas nas mesmas bases contratuais: um finge que transfere recursos e poder, outro finge que aceita e se empenha, ambos capitalizam durante a lua de mel e se acusam nos momentos de crise sabendo que vão repactuar mais adiante.
A notícia da reforma é boa, e já vem mais do que tarde. O Incra foi criado no regime militar para realizar uma reforma que, nos termos propostos e até hoje vigentes, se tornou desnecessária, anacrônica e até incoerente - para usar termo polido - do ponto de vista do País. Seria preciso, pois, repensar a própria reforma antes de reformar o Incra. Não é suficiente assentar menos e indicar que a prioridade agora é melhorar a qualidade dos assentamentos existentes. É preciso repensar o papel dos assentamentos rurais no Brasil de hoje, onde e em que condições se justificam, quem é o público beneficiário, quais as responsabilidades do Estado e que instrumentos pode e deve legitimamente mobilizar para cumprir sua parte. É preciso pensar se o País precisa de fato de um Incra. Antes de responder a essas questões, qualquer reforma será só uma maquiagem ligeira que dificilmente trará maiores benefícios ao País.
Fonte: Antônio Márcio Buainain é professor de Economia da Unicamp
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